O CÃO DE ÁGUA PORTUGUÊS
- Primeira nota histórica(1) -

Leão, (DOB 1931)


Durante quase um ano, o ano do cinquentenário do Clube Português de Canicultura, procurámos reunir quanto se sabia e quanto não se sabia sobre a história do Cão d'Água Português. Interessava-nos tudo o que se referisse tanto à "pré-história", ao cão do pescador, como à história dos nossos tempos, iniciada no momento em que a DINA e o LEÃO deram entrada no então chamado L.P.O., Livro Português de Origens, com os números 2.402 e 2.403.
Um ponto em particular nos parecia mal documentado: o "como" da passagem do barco do pescador para os ringues das exposições. Uma outra interrogação se nos punha: sendo o cão tão usual no nosso litoral, porque é que não aparecia representado na iconográfia portuguesa? Escrevemos para quase todos os Museus portugueses, visitámos muitos deles. O Cão d'Água contudo não parecia fazer parte dos temas preferidos pelos nossos pintores. Também a bibliografia era escassa: o único trabalho conhecido era o do Prof. Doutor Manuel Fernandes Marques, com uma resenha histórica e o estalão da raça. No entanto ia-se fazendo luz pouco a pouco. Aqui e além surgia um novo dado, que se ia juntar aos já existentes, começando a história a tomar forma como um quebra-cabeças que se vai resolvendo.
Pela dedicada colaboração que nos dispensaram agradecemos: ao historiador e especialista de história da arte Dr. José Manuel Ferrão; a Dra. Ana Isabel Líbano Monteiro, da biblioteca Nacional; à D. Margarida Ribeiro, do Instituto Português do Património Cultural; à D. Maria Teresa Lane Miranda Monteiro ; à D. Patrícia Bensaúde Fernandes: ao Sr. Fausto Pereira dos Santos e à D. Hortense, sua Esposa, ao Dr. António Bensaúde; aos Directores e Conservadores de todos os Museus a que nos dirigimos; e a todas as outras pessoas que pelo trabalho se interessaram e de alguma forma colaboraram na sua elaboração.
Sobre a origem do Cão d'Água, sabe-se que entre os romanos ele já era conhecido com o nome de "Cão Leão", devido ao corte do pêlo, já nessa época praticado, que lhe deixava a cabeça em juba. O Prof. Doutor Manuel Fernandes Marques (1) interroga-se sobre a possível origem fenícia desta raça, referindo-se ao seu possível parentesco com os barbetos, deixando no entanto a questão em aberto. Muitos anos mais tarde surge um interessantíssimo trabalho (2), da autoria de Margarida Ribeiro, que se debruçou sobre o Cão d'Água porque se interessava pelos costumes dos pescadores. Sem quaisquer preocupações quanto ao estalão da raça ou aos padrões cinológicos habituais, Margarida Ribeiro proporciona-nos no entanto um excelente e muito documentado estudo sobre o Cão d'Água e o da sua origem e história pôde apurar. É ela que nos diz que "Cliffora L. B. Hubbard afirma que o Cão d'Água foi levado de Portugal para Espanha, durante a ocupação política e militar do nosso país. Com o gado que entrava em Espanha iam cães cujos méritos e robustez, imediatamente reconhecidos, foram postos ao serviço dos diferentes navios que constituíram, em Maio de 1588 a Invencível Armada.
Tais Cães teriam sido treinados especialmente, para tarefas de salvamento. Exemplares desta raça deram à costa, depois da destruição daquela armada. Segundo opinião de Hubbard, o actual "Water Spaniel" irlandês é um legítimo descendente do nosso Cão d'Água do final do século XVI.
Afirma também um tratado de 1353, consertado entre os moradores do Porto e Lisboa e o rei de Inglaterra, permitiu que os pescadores portugueses pescassem nos portos daquele reino, na Bretanha e outros portos e lugares convenientes, pagando apenas os direitos costumados".
O mais antigo escrito sobre o Cão d'Água data de 1297. Um monge descreve o salvamento de um pescador por um cão de água. "O cão tinha o pêlo comprido e preto, tosquiado até à primeira costela, e com um tufo na ponta da cauda".
James White afirma que bastantes dados levam a crer que a raça originária do Cão d'Água provém de Kirghiz, na Rússia, uma área ocupada por turcos hostis, que viviam num vale isolado quase sem comunicação com o resto do mundo. Para os rebanhos que criava este povo teria seleccionado um cão com boas aptidões de trabalho, que mais tarde teria sido introduzido pelos Bárbaros na Península Ibérica, onde se teriam instalado sobretudo no Algarve. James White refere ainda como facto que metade dos navios da Invencível Armada (que totalizava 130 embarcações) levavam cães de d'água portugueses a bordo , para servirem de correio entre os barcos ou dos barcos para a costa ... é de notar que nesta época não havia rádio! Aquando do naufrágio da Armada, ao largo da costa da Irlanda, estes cães teriam dado à costa vivos, o que é possível, dada a sua capacidade de resistência para nadar durante quilómetros, e ter-se-iam cruzado com as raças autóctones, tendo-se originado a partir desses cruzamentos o actual Irish Water Spaniel, que apresenta notáveis semelhanças com o nosso cão de água.
O advento das tecnologias modernas de pesca e de comunicação iria tornar progressivamente menos necessário o cão do pescador, o cão de embarcação. No principio do nosso século o Cão d'Água era ainda, em Portugal, o melhor companheiro do pescador, tão estimado e protegido como qualquer homem da companha, com direito a soldo diário e a um quinhão de peixe, como os outros pescadores. Mas a furiosa modernização do século XX fez-se sentir mesmo a este nível: os pescadores nem sempre podiam suportar a despesa de manutenção do cão que se lhe tornava supérfluo. E pouco a pouco iam desaparecendo os cães de água da orla marinha portuguesa.
Pelos anos 30, começou Vasco Bensaúde a interessar-se pelo Cão d'Água Português. Na sua Quinta dos Soeiros, em Benfica, criava já algumas raças de cães: Irish Wolfhound, Cocker Spaniel e Clumber Spaniel. Dispunha de instalações modernas e de vários empregados só para cuidar dos cães.
O seu interesse pelos cães de água ter-se-á devido, em grande parte, à amizade de Renato Pinto Soares e de Manuel Fernandes Marques, ambos naturais de Sesimbra, onde por essa época havia ainda cães de água nos barcos. Nas a raça estava já em perigo de extinção a breve prazo e Vasco Bensaúde propôs-se salvá-la e preservá-la.
No dia 1 de Maio de 1937 nascia a primeira ninhada de cães de água do Canil Algarbiorum: Três machos e cinco fêmeas, filhos da cadela DINA e do célebre campeão de trabalho e beleza, de nome LEÃO, que viria a ser o cão padrão, a partir do qual foi estabelecido o estalão da raça, e que padreou sete das primeiras ninhadas do Canil Algarbiorum. O LEÃO viria a morrer durante a guerra, deixando no L.O.P. trinta filhos registados.
A história deste cão, o LEÃO, é deveras curiosa e está recheada de pormenores pitorescos. O LEÃO era o cão de companhia e trabalho de um pescador, supõe-se que de Albufeira. Vasco Bensaúde, que tinha posto os seus barcos pesqueiros e muitos amigos seus na pista de bons cães de água, terá ouvido falar deste cão pela boca do Médico-Veterinário Prof. Dr. Manuel Fernandes Marques, seu grande amigo. Com a intenção de observar e adquirir o cão deslocou-se propositadamente ao Algarve, onde os seus desígnios encontraram um inesperado obstáculo: o dono do LEÃO não o vendia nem trocava por preço nenhum, e declarou que só o vendia no dia em que lhe saísse a sorte grande. Vasco Bensaúde terá regressado a Lisboa bastante decepcionado, mas certamente não desistiu. Semanas depois recebeu um recado do filho do pescador, tinha saído a lotaria ao seu pai, e podia ir buscar o cão.

Sagres Algarbiorum
DOB 1/Mai/1937

Leão
DOB 1931

Olhão Algarbiorum
DOB 1/Mai/1937

Foi o Sr. Fausto Pereira dos Santos, empregado de Bensaúde, quem foi buscar o LEÃO à Escola de Medicina Veterinária, em Lisboa, para onde o trouxera entretanto o Prof. Dr. Manuel Fernandes Marques. O LEÃO depressa se adaptou ao seu novo estilo de vida; apreciava os passeios de carro com o dono, os mimos dos meninos da casa, e deixava-se treinar pelo Fausto, cuja única missão inicialmente era treinar os cães. Uma vez por outra a saudade dos primeiros anos ou o atavismo dos seus maiores o levou a evadir-se. Mas regressou sempre a casa daquele que reconhecera como dono. Era obediente e dócil, embora temperamental, extremamente inteligente e afectuoso. Dizem, algumas pessoas que o conheceram, que era um cão quase humano a quem só faltava falar. Bem conhecidas e muito faladas foram as provas de trabalho e destreza que realizou em Lisboa, nas exposições do Jardim Zoológico, e que tinha lugar no tanque dos hipopótamos, perante a admiração e o aplauso de um público numeroso e entusiasta.
Sete das primeiras ninhadas de cão de água Algarbiorum foram padreadas pelo LEÃO, e todas as outras feitas a partir de descendentes dele. Alguns cães vieram ainda do Algarve, como o Nero e a Vanêsa, mas foram sempre cruzados com descendentes do LEÃO, pelo que todos os cães Algarbiorum receberam em maior ou menor grau, sangue do cão que serviu de padrão à raça.
Até 1955 apareceram registados no L.O.P. 100 cães com afixo Algarbiorum, parte deles já sob tutela de outras pessoas que não a família Bensaúde. Vasco Bensaúde não terá querido, por princípio, vender os cães, enquanto o estalão de raça não estivesse aprovado pelos organismos competentes; terá aberto no entanto uma ou outra excepção, e ofereceu também cães a variadas pessoas.
O LEÃO morreu durante a guerra, e foi sepultado na Quinta dos Soeiros, debaixo de uma magnólia. Pena será que não tenha ocorrido nesse momento a ideia ou a ocasião de taxidermiza-lo, pois seria curioso conservar o cão padrão, que viria a adquirir tanta importância numa perspectiva histórica. Mas certamente que a época conturbada não dava lugar a grandes fantasias, pois seria natural que Vasco Bensaúde ou algum dos Médicos-Veterinários que frequentavam os Soeiros - Fernandes Marques, Mário Canto de Sousa ou Frederico Pinto Soares se tivessem lembrado disso.
Com data de nascimento de Junho de 1954 aparece registado o primeiro Cão d'Água que não tinha a sua origem no Canil Algarbiorum nem era pertença de Vasco Bensaúde; era o Silves, propriedade do Dr. António Cabral, que se interessava também por cães de água e se propusera seleccionar uma estirpe sem ir buscar sangue Algarbiorum. Assim começava a criação de cães de água no canil de Alvalade.
Entretanto Vasco Bensaúde desinteressava-se por cães de água; conseguira salvar a raça e seleccionar cães excelentes. O triunfo estava consumado, a novidade acabara. Manteve no entanto uns quantos exemplares no seu canil; em parte talvez por consideração para com o seu empregado Fausto, que era muito dedicado aos cães. A própria família de Bensaúde não se interessava demasiado pelos cães. Quando Vasco Bensaúde morreu, em 5 de Agosto de 1967, nenhum dos familiares tinha disponibilidade para se encarregar do canil, por essa época surgia outro nome no cartaz dos criadores de cães de água; o de Conchita Citrón, famosa cavaleira tauromáquica de origem peruana, naturalizada portuguesa, que na sua Quinta do Índio, em Feijó com muito boas instalações, possuía já um bom núcleo de cães de água. E foi a Conchita Citrón que a família Bensaúde entregou o Canil Algarbiorum, que à data possuía quatorze exemplares.
Em 1968 Deyanne e Hergert Miller, norte-americanos, interessados no nosso Cão d'Água, e dispostos a preservar a raça vieram a Portugal para adquirir um casal de Cães de Água, a partir do qual se iniciou a criação desta raça no Canil Farmion. Os primeiros exemplares provinham do Canil Al-Garbe, de Conchita Citrón, descendentes de linha Algarbiorum.
Aproximadamente sete anos depois surge um desenlace inesperado e inexplicável; Conchita Citrón, por razões ainda não totalmente esclarecidas, fez abater todos os seus cães, pondo assim bruscamente termo a um trabalho de selecção e apuramento efectuado durante décadas. Desaparecia assim um óptimo e numeroso núcleo de cães de água, que entretanto tinham também desaparecido da costa algarvia e do restante litoral português. Restavam apenas duas linhas, a do canil de Alvalade, que já há anos apresentava excelentes cães, e a do Canil Farmion nos Estados Unidos. O casal entretanto fizera cruzamentos com cães de Alvalade, de forma a diminuir a consanguinidade e melhorar cada vez mais a raça, e fundaram o PWDCA, Portuguese Water Dog Clube of America, que viria a contribuir para o fomento da raça. A história do Farmion Kennels está feita, pelos Miller. A raça não se extinguiu. E o resto da história poderá ser contado em breve.


Bibliografia:

(1) Elementos sobre o Cão de Água Português - Açoteias 1981
de Dra. MARIA ANA MARQUES - Médica Veterinária - Professora da E.S.M.V.

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